Histórias indígenas do povo Huni Kuin são retratadas em game inovador

Segunda versão do game já pode ser baixada gratuitamente em formato demo

05.04.23

Pela primeira vez, um povo indígena do Brasil teve suas histórias tradicionais contadas através de um jogo de videogame. E apesar de ainda não ter sido lançado oficialmente, já está disponível a demo de Huni Kuin: Beya Xinã Bena (Novos Tempos). Essa versão é uma continuação das histórias retratadas no premiado game Huni Kuin: Yube Baitana (Os caminhos da jiboia), lançado em 2016. 

O desenvolvimento do jogo juntou antropólogos, programadores e artistas de São Paulo (SP) e indígenas do povo Huni Kuin (ou Kaxinawá), do Rio Jordão (AC). Para sua composição, foram registradas histórias tradicionais, cantos de pajés e sons da floresta amazônica. Os indígenas também desenharam todas as ilustrações utilizadas. 

A proposta do jogo veio do antropólogo Guilherme Meneses. Ele conta que cria jogos desde criança. “Eu gosto de pensar e criar jogos. Já fiz jogos de tabuleiro, jogos de cartas e outros games eletrônicos, porém mais simples, nada como este”, diz. A primeira versão do game, Huni Kuin: Yube Baitana, venceu três prêmios, incluindo o de melhor jogo da diversidade, do BIG Festival, o mais importante festival de jogos eletrônicos da América Latina.  

Imagem: Nadja Marin/Game Huni Kuin.

O game Huni Kuin: Yube Baitana – os caminhos da jiboia

O jogo é sobre um casal de gêmeos kaxinawá concebidos pela jiboia Yube. Ele é um jovem caçador e ela, uma pequena artesã. Eles herdam os poderes especiais da jiboia e precisam passar por uma série de desafios ao longo do jogo para se tornarem, respectivamente, um curandeiro (mukaya) e uma mestra dos desenhos (kene). 

A cada fase, os personagens adquirem habilidades e conhecimentos de seus ancestrais, dos animais, das plantas e dos espíritos. E entram em comunicação com os seres visíveis e invisíveis da floresta (yuxin), para se tornarem, enfim, seres humanos verdadeiros (Huni Kuin).

Essas histórias foram baseadas em relatos dos anciões das aldeias. São histórias tradicionais do povo Huni Kuin. Para desenvolver o game, cerca de 30 colaboradores indígenas se envolveram na produção, entre pesquisadores, artistas e cineastas. Os indígenas desenharam as ilustrações que compõem o game, cerca de 100 desenhos.

Os cantos nativos, fundamentais para diversas atividades da vida na aldeia, como rituais de ayahuasca e atividades ligadas ao plantio e colheita dos alimentos, foram utilizados na composição do áudio. Já a trilha sonora foi feita com as músicas do CD Mae Inini – Power of the Earth, gravado anteriormente em uma parceria entre os Huni Kuin e o grupo norueguês-brasileiro Amazon Ensemble.

Imagem: Nadja Marin/Game Huni Kuin.

Preservação da cultura através da tecnologia

Segundo Guilherme Meneses, até pouco tempo atrás havia uma preocupação dos Huni Kuin em manter seus conhecimentos em segredo, devido às incertezas do que poderia ser feito com esses saberes. “Mas de uns tempos para cá, isso mudou parcialmente, o conhecimento se abriu. O pajé Agostinho Ikamuru, antes de fazer a passagem, costumava dizer que a cultura huni kuin só se manterá viva se começar a circular para fora da Terra Indígena, não somente lá dentro”, conta.

Ele lembra que o primeiro lançamento do jogo, mesmo não tendo feito nenhum tipo de marketing, teve ampla cobertura jornalística, com notícias veiculadas nos principais jornais nacionais e internacionais. O jogo também ilustrou diversos materiais didáticos e foi apresentado no circuito SESC de São Paulo, com a participação de alguns indígenas Huni Kuin.

Na maioria das aldeias, porém, os indígenas não utilizam computadores, porque não há energia elétrica e sinal de comunicação. Ainda assim, o uso de celulares hoje é mais comum entre os indígenas, que estão sempre em trânsito entre a aldeia e a cidade e usam o aparelho para se comunicar. Por isso, a segunda versão do game foi pensada especialmente para rodar em aparelhos móveis. 

A expectativa é que o jogo seja compartilhado entre os próprios Huni Kuin. “Apesar de ser lúdico, o game tem essa característica também, de fazer essas histórias circularem. Muitos jovens Huni Kuin ainda não aprenderam todos os conhecimentos que os mais velhos possuem. Nem mesmo os filhos dos pajés. E esses anciões não vivem para sempre”, afirma. 

Guilherme Meneses, idealizador do game, está sentado atrás à esquerda. Imagem: Nadja Marin/Game Huni Kuin.

A segunda edição do game – Huni Kuin: Beya Xinã Bena

A segunda edição ainda não foi lançada oficialmente, mas já existe a versão demo, que pode ser baixada gratuitamente pelo Google Play e pela plataforma de games STEAM. “Nessa segunda versão, acrescentamos duas histórias novas, são sete fases no total. É um jogo longo, são necessárias várias horas para percorrer todas as fases. E em termos de programação, não é tão fácil de fazer, porque estamos sempre mudando de cenário. Diferente, por exemplo, de um jogo de luta, que é um sistema mais simples”, explica Guilherme.

As duas histórias novas são sobre o quatipuru encantado e o jacaré-ponte. Além disso, a segunda versão do game possui nova interface. A estrutura do jogo foi repaginada e as mecânicas, alteradas. “Quem jogar a segunda versão, vai perceber. Nós reformulamos a maneira como as histórias estão apresentadas no game”, avisa.

“Eu percebi o valor desse projeto depois de ter circulado em outras terras indígenas. Por exemplo, a Terra Indígena Igarapé do Caucho, perto da cidade de Tarauacá. São mais de mil indígenas vivendo lá e, apesar de serem todos Huni Kuin, eles não falam mais na língua nativa, somente em português. Eles disseram que não conheciam essas histórias que estão no game. É do povo deles, mas eles não sabiam”, conta Guilherme, que teve a oportunidade de projetar o jogo recentemente na escola local.

Imagem: Nadja Marin/Game Huni Kuin.

As demandas nas aldeias e a Associação Povos da Terra – APOTI 

Os Huni Kuin constituem a maior população indígena do estado do Acre, com aproximadamente 12 mil habitantes, espalhados em 12 terras indígenas e em território urbano. Outra porção, menor, cerca de 2,5 mil habitantes, vive no Peru. Guilherme conta que foi através do jogo que ele e seus colegas de equipe fizeram o primeiro projeto de infraestrutura nas aldeias Huni Kuin. 

“Com o game, percebemos que dar visibilidade para a cultura deles, apesar de ser importante, traria pouco impacto imediato para a vida nas aldeias. E eles nos disseram que precisavam de eletricidade. A gente nem sabia mexer com energia solar, mas durante o desenvolvimento do primeiro game, fizemos cinco instalações e recuperamos outras três que estavam estragadas. Aprendemos fazendo para eles”, lembra Guilherme.

A equipe do game criou então a Associação Povos da Terra – APOTI, uma ONG para continuar dando suporte nas demandas locais. “Hoje em dia eu trabalho profissionalmente com energia solar. Mas antes, fiz as instalações no Rio Jordão e depois no Rio Humaitá, durante cinco anos, tudo de forma voluntária. Só então formalizamos a iniciativa e buscamos parceiros dentro e fora do Brasil, para que pudessem apoiar”.

A energia é usada em sistemas de iluminação coletivos. Além da energia solar, a Associação Povos da Terra oferece serviços de infraestrutura ligados ao abastecimento de água potável, construções coletivas, saneamento ecológico e internet.

“As águas dos rios do Acre não são potáveis, fizemos análise em laboratório, a maioria é imprópria para consumo humano. E as crianças ficam com diarreia, há muita mortalidade infantil. Há também uma questão cultural dos Huni Kuin: as mulheres são as responsáveis pela água da aldeia e muitas já se acidentaram, algumas até morreram, porque precisam subir barrancos com um balde de água na cabeça”, explica Guilherme Meneses.

Direitos autorais, ONGs parceiras e doações 

A Associação Povos da Terra – APOTI está representando os direitos autorais da segunda versão do jogo. Dessa forma, quaisquer receitas recebidas pelo game após seu desenvolvimento ser concluído irão para a Associação, que serão revertidas em trabalhos de infraestrutura e manutenção dos equipamentos nas aldeias. Para realizar outros trabalhos, a Associação também participa de editais nacionais e faz parcerias com ONGs internacionais.

Imagem: Nadja Marin/Game Huni Kuin.

“Já fizemos parcerias com ONGs da Rússia, França e Inglaterra. No último governo foi muito difícil. Praticamente não teve edital, se não fosse o apoio internacional, nem sei o que seria. Mesmo o apoio internacional para as ONGs foi pequeno, porque as metas de controle de desmatamento foram descumpridas e países como Alemanha e Noruega, que sempre apoiaram projetos na Amazônia, pararam de apoiar”, diz Guilherme. 

Ele explica que os Huni Kuin estão com escassez de proteína e a alimentação está comprometida, por isso também precisam de doações de pessoas físicas. “No Acre, o desmatamento está ligado com a extração de madeira e a criação de gado. E o aumento do desmatamento nas áreas ao redor das terras indígenas está afugentando a caça. Os indígenas possuem outro pensamento, eles estão preocupados com o dia de hoje, não trabalham com a ideia da acumulação. E muitos estão passando fome. Então, atualmente, nós da Associação estamos estudando projetos com agrofloresta e criação de galinhas”, afirma. 

Apesar do game ter envolvido cerca de 30 indígenas na sua produção, nenhum Huni Kuin quis se tornar um desenvolvedor de games. “É uma realidade muito específica, muito diferente da nossa, que vivemos na cidade. Eles não têm nem computador, por exemplo. Mas o Isaka trabalhou bastante comigo, acabou virando o coordenador indígena do projeto. É ele quem apresenta o game fora da aldeia, engaja bastante as pessoas nessa temática”, lembra Guilherme.

Jogo independente 

A equipe técnica que desenvolveu o game é formada por apenas três pessoas: Guilherme Meneses, antropólogo, que atuou como produtor e game designer; o programador Carlos Nascimento, e a artista digital Lita Hayata. Além disso, a antropóloga Nadja Marin é a vice-coordenadora do projeto e responsável por toda a parte de audiovisual, como os vídeos das histórias e as fotografias. A equipe também contou com outros quatro antropólogos parceiros, que trabalharam com as funções de consultoria antropológica, instalação de sistemas de energia solar, adaptação de roteiro e suporte de sonoplastia. 

Imagem: Nadja Marin/Game Huni Kuin.

Foram cerca de quatro anos desde a primeira viagem de campo até a finalização do jogo. Os primeiros dois anos, porém, sem qualquer financiamento. “Nós pagamos as passagens com nosso próprio dinheiro para ir à aldeia, porque a gente acreditava que ia dar certo. Somente depois de dois anos recebemos uma verba do Itaú Cultural, a partir do edital Rumos. Para esta segunda versão, contamos com a verba do edital PROAC São Paulo”, diz. 

Para desenvolver o primeiro game, eles fizeram quatro viagens de campo às terras indígenas Kaxinawá do Rio Jordão, Baixo Rio Jordão e Seringal Independência, no Acre. Lá foram realizadas oficinas de desenhos, gravação de cantos e contação de histórias, para elaboração da proposta temática do jogo, assim como a produção de conteúdo para a composição visual e narrativa das fases.

A dificuldade para desenvolver um jogo independente no Brasil ligado a temas culturais tem a ver com o próprio objetivo do jogo. Por isso, o apoio dos editais é fundamental, afirma Guilherme. “Existe um entendimento de que o game é uma indústria nascente no Brasil e que precisa ser incubada. Então o poder público financia os desenvolvedores para competir no mercado global. Só que existem dois tipos de projetos: os games que são feitos para serem comercializados, que são os projetos para a indústria de games. E tem os projetos culturais, em que nós estamos incluídos”, diz. 

“Nós não vendemos o jogo e só conseguimos desenvolver o projeto porque tivemos apoio dos editais de cultura. Porque nós trouxemos temas brasileiros para o game, a temática indígena. Diferente de outros jogos, que usam imagens genéricas do indígena, que não fala de nenhuma realidade específica, que brinca com o tema, mas não cita o povo, nem o nome certo das coisas. É tudo fantasioso, ao contrário das histórias que a gente traz, que são verdadeiras, são histórias milenares, nós trouxemos os conhecimentos deles”, conta Guilherme.

Antropologia e Ayahuasca

Dez anos atrás, Guilherme Meneses não conhecia as aldeias Huni Kuin. “Eu cheguei na aldeia em 2013, para o primeiro trabalho de campo do game. Só depois fui fazer trabalhos de campo para o mestrado e doutorado”, lembra. Sua tese de doutorado foi defendida na Universidade de São Paulo, no início de 2020. Para a tese, ele mapeou os movimentos contemporâneos de ayahuasca e outras medicinas da floresta entre os Kaxinawá do Rio Humaitá e do Rio Jordão e centros urbanos do Brasil e do exterior. 

Imagem: Nadja Marin/Game Huni Kuin.

A ideia do jogo, recorda, teve a ver com a inserção dele na Antropologia, na USP. “Desde aquela época eu lia livros etnográficos, como Crônica dos Índios Guayaki, de Pierre Clastres, e já imaginava fazendo um jogo eletrônico com aquelas populações indígenas, que na verdade nem existem mais…”, diz. 

Foi a iniciação com a ayahuasca que levou ao encontro com os Huni Kuin. “Eu conheci um Huni Kuin e ele me apresentou seu trabalho de desenho e cantos. Comecei uma conversa com ele e, depois, com vários outros Huni Kuin, até eu ir para a aldeia ver como ia fazer”, lembra Guilherme. 

Sua relação com a planta também trouxe inspirações para o game. “Eu já tinha tido a ideia, mas uma vez em Alto Paraíso, em janeiro de 2013, tomei ayahuasca e vi na miração os desenhos huni kuin cartonizados. Ali visualizei exatamente como seria. Tinha que ser retrô, com uma estética dos jogos mais antigos, em 2D. Não posso dizer que partiu disso, mas teve essa interação também”, recorda-se. 

Quer apoiar esta causa?

É possível fazer doações pelo site Game Huni Kuin e Associação Povos da Terra – APOTI.

Para quem quiser ser voluntário, também é possível cooperar com o trabalho da Associação e com o teste dos games. “Precisamos de voluntários beta-tester”, avisa Guilherme.

    Mídia Índia
    Mídia Índia
    Localização
    Contato
    Apoio
Maira Carvalho
Jornalista e Antropóloga, Maíra é responsável pela reportagem e por escrever as matérias do Lupa do Bem.
Compartilhar:
Notícias relacionadas