Conheça Watatakalu Yawalapiti, liderança indígena que luta pelos direitos das mulheres

Nascida no alto Xingu, Watatakalu fala sobre machismo dentro e fora da aldeia e mostra a importância das mulheres para o bem comum

29.02.24

De família Aruak, Watatakalu Yawalapiti é filha de importantes líderes indígenas do Alto Xingu, condição que fez com que também fosse criada para ser uma liderança. Hoje, ela é uma ativista internacional. Somente ano passado, esteve em diversas conferências nacionais e internacionais e foi a única da comitiva indígena do Xingu que esteve no Festival de Cannes, ao lado de Raoni Metuktire, levando a voz das mulheres e da Amazônia. 

Para chegar onde está, teve que romper com regras machistas dentro e fora da aldeia. Por isso, não deixa dúvidas quanto a sua principal bandeira de luta: “Não adianta falar de mudanças climáticas, de futuro, sem ouvir as mulheres”. Conversamos com ela sobre sua trajetória enquanto liderança, o período de reclusão, o movimento das mulheres do Xingu, machismo e muito mais. Confira!

Lupa do Bem: É comum as mulheres se tornarem lideranças na cultura indígena?

Watatakalu Yawalapiti: Tanto meu pai, Pirakuman Yawalapiti, como minha mãe, Iamoni Mehinako, foram lideranças nos seus povos. E por eu ser a filha mais velha, toda essa questão de representação recaiu  sobre mim. Então desde muito criança, mesmo não entendendo as coisas, eu estava em todos os espaços que meus pais queriam que eu estivesse, como se eu fosse adulta. Meu pai, principalmente, estava sempre no movimento indígena, falando sobre a proteção das florestas, proteção de direitos.

E como foi esse processo em que você se tornou uma liderança?

Meu pai queria que eu aprendesse muitas coisas, mas minha mãe achava que por eu ser mulher, não tinha que aprender, porque eu poderia querer coisas que não era para uma mulher fazer. Isso foi algo que me impulsionou. Comecei tentando me proteger de algumas regras da nossa cultura que na minha visão não eram certas (Watatakalu desfez-se de um casamento que foi arranjado para ela aos 15 anos de idade). Além disso, por ser filha de lideranças, percebi que podia falar e ser ouvida nos espaços que já estava acostumada a estar.

Que espaços são esses? 

A reunião do Conselho da Saúde Indígena, por exemplo (importante espaço de decisão onde participam indígenas e não-indígenas, em geral, profissionais de saúde e representantes do governo). Quando foi falado o que que era bom e o que não era bom para nós, povos indígenas, vi pessoas falando coisas que não tinham nada a ver. Naquele momento senti que precisava participar dessas discussões também. Meu pai era daqueles espaços, eu ia junto, mas não falava. Quando vi uma mulher de outro povo falar e os homens riram, todo mundo abaixando a cabeça, ninguém queria ouvir, aquilo me incomodou.

Quantos anos você tinha naquela ocasião?

Ah, eu já era velha, tinha uns 17 anos.

Foi a primeira vez que você falou em público? 

Sim! E foi muito difícil, fiquei bem nervosa. Daí um cara falou assim: ‘Tá vendo? Mulher não tem que falar! Mulher tem que ficar fazendo beiju, ralando mandioca.’ Pra mim, foi doloroso escutar aquilo, constrangedor! Voltei pra casa arrasada… Lembro que na hora não entendi porque uma enfermeira foi lá e me abraçou, mas ela também sentiu isso, né?! Hoje eu já não acho ruim, porque me fez pensar. Não quis aceitar que aquele cara tinha me humilhado. Estava com raiva de mim mesma porque fiquei tremendo (na hora de falar a opinião em público). Pensei: por que fiquei tremendo?! Os caras nem falavam direito a língua dos brancos e ficaram falando de mim… Então isso me deu um empurrão.

Imagem: reprodução.

Você comentou que seu pai queria que você aprendesse muitas coisas, mas sua mãe tinha receio… 

Eu tive essa preparação para ser uma liderança dos dois lados da minha família, tanto por parte de pai, como de mãe, que são de povos diferentes, com culturas diferentes. E por estar com nossa mãe a maior parte do tempo, minha presença era ao lado dos meus avós. Os ensinamentos que carrego hoje são dessa época. Passei por muitos momentos que não pude estar com minhas primas, em alguns rituais, enquanto estava todo mundo se divertindo, tinha que estar dentro de uma oca como se fosse vigia das coisas. Tudo isso antes da reclusão… 

(A reclusão é um importante processo de formação dos adolescentes no Alto Xingu e costuma durar um ano ou mais. No caso das meninas, a reclusão acontece após a primeira menstruação. Ao final da reclusão, os adolescentes são considerados adultos). 

Como foi esse período de reclusão? Poderia falar um pouco sobre isso?

Imagine um quarto pequeno, todo fechado de palha, com uma rede no meio, sem janelas, apenas uma fresta para a luz do sol entrar e eu poder enxergar lá dentro. Eu passava o dia inteiro nesse espaço. Tinha que acordar antes de todo mundo da aldeia e dormir só depois que todos fossem dormir. Não podia tomar sol. Tinha que tomar vários banhos por dia, uns seis, mais ou menos. Tinha um local lá dentro para fazer xixi, mas qualquer outra coisa de banheiro, só de noitinha e não podia ir sozinha, tinha que ser sempre acompanhada da mãe, avó ou a tia. 

Durante a reclusão, eu só podia ter contato com essas mulheres e com meu avô, raramente com meu pai, mais ninguém. Não podia ver outras crianças, mas houve alguns momentos que passei com minhas primas. A reclusão é como se fosse uma universidade indígena e para mim foi muito dolorido. Porque não é só aprender, mas também preparar o corpo, passar raízes, usar arranhadeira (utensílio feito de dente de peixe cachorra fincado numa cabaça cortada em triângulo; os dentinhos arranham o corpo com o objetivo de estimular a circulação sanguínea e receber substâncias na pele, como remédios). 

Meu avô, pai do meu pai, era quem passava arranhadeira em mim, uma vez por semana. Ele era um homem bem rígido. Para ele, nós não poderíamos fracassar ou errar, e todos os dias que eu sabia que ia ter arranhadeira, já ficava com febre desde cedo. Lembro que uma vez, chorei muito e ele falou que aquilo não era nada perto das dores que a vida ia me fazer sentir. Então a arranhadeira ensina a superar coisas dolorosas, os desafios da vida.

Quantos anos você ficou em reclusão?

Eu tinha 11, quase 12 anos quando entrei. É um processo que todos os indígenas passam, mas quando são filhos de lideranças, é mais longo. O tempo de reclusão depende de cada família, pode ser um ou dois anos, às vezes, até cinco. Eu tive uma reclusão de três anos, e apesar de difícil, foi a melhor parte da minha vida, porque tive total apoio da minha família, não aconteceu nada de ruim comigo naquele período. E quando saí de lá, com quase 15 anos, estava pronta para viver o que a vida tinha para me dar.

O que você aprendeu durante esse tempo? 

Durante a reclusão, recebia um monte de encomendas, precisava produzir rede, fibra, tinha encomendas da aldeia inteira. Isso é uma forma de ensinar. Minha avó, minha mãe e minhas tias me ensinavam a fazer as encomendas. Não podia dormir de dia, então o tempo todo nossas famílias me vigiavam para não dormir. E de noite, eu escutava as histórias do meu povo. Também tinha uma alimentação diferente. Por seis meses, comi só mingau de beiju e peixe lavado, não podia ter gordura, comer doce ou sal. 

Hoje você é a coordenadora da ATIX Mulher. Qual o impacto da criação de uma organização de mulheres no Xingu?

Bem, antes eu preciso falar um pouco sobre a Associação Terra Indígena Xingu. A ATIX foi criada em 1995 pelos nossos pais, com o intuito de fortalecer a luta indígena do Xingu. Muitos eram servidores da FUNAI e trabalhavam fazendo a fiscalização do território naquela época. Eles prendiam todo mundo que invadia o território, pescadores, madeireiros… E falaram para eles criarem uma associação, para conseguir trabalhar melhor. 

Isso foi em 1995. Em 2000, nós tentamos criar uma associação de mulheres. Mas era um grupo de mulheres com pensamentos muito diferentes. Umas queriam a associação para garantir os direitos das mulheres, para que elas pudessem estar nos espaços de decisão. Outras, porque queriam ganhar panelas e vestidos. E outras, para nunca mais precisarmos dos homens… mas na hora de ir para a primeira Assembleia das Mulheres, uma mulher deu um golpe e resolveu criar outra associação. 

Não deu certo e nós ficamos traumatizadas. Cada uma resolveu seguir seu caminho e, em 2019, depois de Belo Monte, começamos a nos articular de novo, porque tinha muita gente falando por nós. Então criamos o Departamento de Mulheres dentro da ATIX, que coordena todos os trabalhos das mulheres do território. Não é uma associação exclusiva das mulheres, é mais que isso, é uma ferramenta do movimento de mulheres. 

Imagem: reprodução.

Qual é a principal luta do movimento das mulheres indígenas do Xingu?

Que as mulheres sejam ouvidas e estejam em todos os espaços onde estão os homens, as lideranças do território. Passamos dois anos articulando a criação da ATIX Mulher para não dar errado. As lideranças femininas dos 16 povos que habitam o território indígena do Xingu participam. Então nós buscamos apoio para transporte, combustível, alimentação. Garantimos também espaços para a realização da Assembleia das Mulheres do Território Indígena do Xingu.

As demandas do movimento são específicas das mulheres, ou é uma demanda para toda comunidade? Como funciona? 

A gente tá fazendo isso para as mulheres, mas não é só para as mulheres, porque os projetos são para toda comunidade. O projeto de agrofloresta beneficia a comunidade inteira, a produção de farinha, a criação de galinha… Então tudo que as mulheres fazem é para todo mundo. Mas só o fato de ser um projeto das mulheres já incomoda um pouco. 

Existe machismo na aldeia? 

O machismo é muito grande, temos enfrentado muitas violências. Tem muita gente que diz que não existe machismo na cultura indígena… não é verdade. O que acontece é que antes as mulheres indígenas ficavam quietas e hoje não. Hoje nós fazemos as coisas com ou sem a vontade deles. Também acho importante dizer que antigamente, dentro da nossa cultura, os homens tinham que consultar as mulheres sobre tudo que eles faziam, mas quando chegou a cultura não indígena, isso acabou. Eles começaram a vetar a nossa presença com não indígenas e pararam de nos consultar.

E fora da aldeia? Como você percebe o machismo?

O machismo está em todas as sociedades. Sofro machismo de todos os lados, tanto dentro da aldeia, como com quem vem de fora trabalhar conosco. Nós mulheres somos tratadas diferente, somos sempre colocadas por último. Falam: ‘deixa, que elas não entendem nada’ ou ‘ela não vai saber falar’ ou ‘acho melhor não ter mulher, porque elas só vão atrapalhar’. E é muito engraçado quando perguntam para os homens se existe machismo na cultura indígena. É lógico que eles vão falar que não…

Como mudar essa realidade?

Através dos nossos  filhos. Não podemos mais fechar os olhos e aceitar que nossos filhos tratem nossas filhas da mesma forma que nossos irmãos tratam a gente. 

Como é sua rotina como ativista hoje?

Ultimamente, por causa da ATIX Mulher, tenho ficado muito mais na cidade do que na aldeia. Então, hoje moro em Canarana, Mato Grosso e viajo cerca de 80% do ano. Estou longe dos meus filhos e fico muito em reuniões, porque preciso fazer essa articulação institucional. Às vezes, represento a ATIX em alguns espaços fora da aldeia também. E circulo muito nas quatro regiões do nosso território, ouvindo as mulheres. Tudo isso é importante, mas gostaria de estar mais com minha família. Por isso quando estou em Canarana ou no Xingu, carrego meus filhos juntos, para não ficar muito tempo longe. Quando viajo pra fora, já não consigo, é muito caro…

Você é uma pessoa atuante nas redes sociais. O que você acha do uso da tecnologia para a causa indígena? Eu poderia dizer, por exemplo, que você é uma influencer indígena?

Não sei, acho que não. É interessante o uso da tecnologia para a causa indígena, mas precisamos tomar cuidado. Tem muita gente falando besteira, dizendo coisas que não existem. E quando mostramos o que de fato acontece, as pessoas acham que não é verdade, entende?! A Internet, apesar de ser poderosa para a causa, também pode servir como ferramenta contra os indígenas. A mídia, por exemplo, dá muita muita fala para quem não deveria. Vi uma reportagem outro dia com alguns parentes um pouco distantes que estavam atacando o trabalho do movimento indígena. Daí acham que só porque saiu na Globo ou na Folha de São Paulo, aquela fala tá certa. Então, precisamos tomar cuidado com isso, para não dar tiro no pé.

Para encerrar, qual a mensagem que você gostaria de deixar para homens e mulheres?

Não adianta falar de mudanças climáticas, de futuro, sem ouvir as mulheres. Nós geramos vidas e não deixamos a educação dos nossos filhos para depois. As mulheres protegem as florestas, os saberes dos povos… São as mulheres que cuidam, não apenas as indígenas, as outras também estão o tempo todo cuidando dos outros, produzindo comida, administrando o bem-estar ao seu redor. Então, também precisamos estar nos espaços onde há tomada de decisão. 

Watatakalu Yawalapiti é coordenadora da ATIX Mulher e cofundadora da Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade – ANMIGA. Para saber mais, siga as redes sociais no Instagram e Facebook.

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Maira Carvalho
Jornalista e Antropóloga, Maíra é responsável pela reportagem e por escrever as matérias do Lupa do Bem.
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