Dia da Visibilidade Trans: conheça Ásia Niara, campeã brasileira de atletismo

Medalhista em diversas provas, Ásia anunciou recentemente sua aposentadoria

29.01.24

Ásia Niara é uma atleta de elite de alto rendimento. Com 26 anos, foi medalhista nacional e sul-americana no atletismo brasileiro e anunciou há pouco tempo sua aposentadoria. Competindo pelo time masculino do Clube Santos, ela decidiu deixar o esporte para focar na transição de gênero. 

Filha de um caminhoneiro e uma empregada doméstica, a atleta de Presidente Prudente (SP) mostra a importância de se reconhecer publicamente como mulher trans: 

“A representatividade é muito daquilo que a Lina (Linn da Quebrada) disse quando participou do Big Brother. É meio que um trampolim. Bate de um jeito que guia seu caminho. Quando ela estava lá dentro, o pessoal do meu grupo no esporte começou a me questionar, queriam saber se estavam me tratando da maneira correta, qual pronome usar…” 

No dia da visibilidade trans, o Lupa do Bem fez uma entrevista pra lá de especial com Ásia sobre gênero e sua trajetória no esporte. Confira os melhores momentos!

Vida de atleta

“Comecei no atletismo em 2012, com 14 anos. Logo no início, fui campeã da seletiva estadual para o campeonato escolar e recordista da categoria de base de 2012 até 2019, então logo de cara já fiquei muito conhecida no esporte. Já fui duas vezes para campeonato sul-americano e mais de oito vezes campeã estadual, além de ter mais de sete medalhas, entre ouro, prata e bronze em campeonatos brasileiros. Então, toda vez que alguém ousava fazer algum comentário sobre minha personalidade no esporte, a pessoa tinha que pensar bem, e na maioria das vezes, acabava recuando.”

Identidade com o feminino

“Quando comecei no esporte, ainda não tinha florescido, não tinha me reconhecido e me aceitado como uma mulher trans, a pessoa que eu sou, mas sempre tive aquela coisa dentro de mim. Tinha algo ali dentro que queria sair, que queria gritar para o mundo, ‘eu estou aqui, eu quero viver e quero ser vista’. E o esporte foi um divisor de águas na minha vida,  porque dentro de casa eu sofria repressão, precisava sempre agir de um jeito que se esperava de mim, tinha que fazer terapia com psicólogo, etc. e quando entrei no mundo do esporte foi um alívio, porque o atletismo é um esporte muito diverso, de roupa, de uniforme, dá para usar adereços. E tudo que eu podia mostrar da minha personalidade, eu ia lá e usava, um cabelo diferente, uma meia diferente, sempre algum adereço diferente. Conforme fui subindo de categoria, isso foi aflorando cada vez mais.”

Grupo Maurren Maggi

“Em 2017, me mudei para São Paulo e comecei a fazer parte do grupo MM, coordenado pelo Nélio e Tânia Moura, treinadores da Maurren Maggi, campeã olímpica no salto em distância individual. Morei em alojamento por um bom tempo e nunca sofri qualquer tipo de preconceito das pessoas que ficavam no meu entorno. Indiretamente, às vezes, tinha piadinha dentro das competições, mas acho que minha personalidade e os resultados que fui galgando ao longo dessa trajetória meio que me blindaram contra esse tipo de coisa. 

Sou muito grata pelos meus treinadores, porque eles nunca me repreenderam, nunca agiram de forma preconceituosa. Pelo contrário, sempre me instruíam para um caminho onde eu iria sofrer menos. Porque ser trans já é difícil, ser trans e negra, desce mais um degrau, e ser trans, negra e de uma família de classe média, classe média baixa ou de regiões periféricas, vai lá embaixo. As expectativas viram zero e é preciso lutar todo dia para não virar uma estatística.”  

Imagem: reprodução.

Diversidade no esporte

“Logo quando me mudei pra São Paulo, participei do GP Brasil de Atletismo. Naquela época, ainda não me reconhecia como mulher trans, mas como um homem homossexual. O GP Internacional é uma competição bem importante, televisionada, e eu competi no salto triplo. Eu estava de tiara e, na saída da prova, um repórter comentou que sempre me via com cabelo diferente, roupa diferente, e pediu para eu falar sobre isso. Só que eu tinha muito medo de ser quem eu era, por causa da minha família. Então respondi ao repórter que não queria opinar sobre aquilo, não me sentia à vontade. Dentro da pista eu mostrava o que eu queria mostrar e estava bom pra mim.” 

Infância

“O feminino sempre me atraiu. Desde pequena, tinha fascínio pelas bonecas. Pra mim era fantástico chegar no final de ano e ver minhas primas ganhando Barbie, sereia… lembro que quando lançou o boneco Max Steel, eu ganhei um de presente. Ele era totalmente articulado, vinha com uma bermuda camuflada, uma arma e uma bota de escalada. E logo de cara, arranquei aquela bermuda e deixei ele só de bota e uns relógios no braço, que pra mim, eram como se fossem os braceletes da Mulher Maravilha. Então, embora eu tenha tido dezenas de problemas, não tive uma infância ruim, sabe? Eu conseguia brincar de tudo. Tinha uma ligação muito forte com minhas primas, que até hoje são muito queridas por mim. E, quando eu ia para a casa delas, as minhas tias nunca me repreendiam por brincar de boneca, essas coisas. Hoje em dia, que já estou totalmente aceita comigo mesma e minha família também, minhas tias e minha mãe lembram muito disso…” 

Terapia

“Desde criança, sempre passei por psicólogos. Eu era a ovelha negra da família, a que tinha problemas. Já tinha ingressado no esporte e continuava indo no psicólogo, mas já estava tendo uma vida linda, já tinha viajado para Colômbia para disputar o campeonato sul-americano. Eu fazia terapia em grupo e ouvia as pessoas falando de momentos delicados da vida, escutava relatos sobre dependência de remédio, pessoas que se cortavam… Eu ouvia e ficava pensando o que eu ia falar na hora que chegasse a minha vez.  Que eu viajava para competir? A minha vida era perfeita! Meus pais me colocavam ali porque eles não entendiam o meu jeito. Até eu não entendia muito. 

Mas o tempo foi passando e comecei a bater o pé! Se gostasse de usar tal roupa, eu usava. Eu queria saber como eu me sentia. Aí comecei a aflorar mais esse lado feminino. Tipo as unhas… A minha marca registrada no Atletismo era a unha. Sempre gostei de unha grande, bem feitinha, passava a base. E as meninas que treinavam comigo sempre perguntavam: “ah, mas você não vai pintar? Você tem que pintar!” Até que chegou um dia e falei: vou começar a pintar!”

Imagem: reprodução.

Relação familiar 

“Em 2018, aflorei um pouco mais e começou um tempo meio conturbado na minha carreira como atleta. As competições começaram a ser televisionadas pelo YouTube e teve uma competição, o Troféu Brasil de 2018, que eu fiquei bem feliz pela minha marca. Fui ligar para os meus pais e quando eu peguei o celular, vi que já estava cheio de áudio do meu pai. Pensei: ele deve ter assistido e veio me dar os parabéns. Mas quando ouvi o primeiro áudio, ele falava assim: “olha para você e para os outros atletas, é por isso que você não consegue coisas maiores”. Ele estava se referindo aos outros homens, porque eu sempre competi no masculino. Ouvir aquilo foi como uma pedra na vidraça. Estava um dia lindo, uma atmosfera boa, estava feliz que tinha competido bem, tinha conseguido uma boa marca, mas depois daquilo só sabia chorar. Fiquei me perguntando o tempo todo o que tinha de errado comigo. Depois percebi que, ao mesmo tempo em que meu pai gerou gatilhos negativos, também gerou gatilhos positivos, porque me deu mais força pra eu assumir quem eu era. Comecei a questionar muito e falei: tem algo aqui dentro!”  

Pandemia

“Na pandemia, acabei voltando para a casa dos meus pais, mas lá eu não podia ser quem eu era de fato, então voltei para São Paulo de novo. Mas, no começo de 2021, tive uma perda muito forte. Uma das minhas melhores amigas de infância morreu e voltei para casa novamente, por um momento de luto. Depois dessa perda, senti cada vez mais fortemente que eu tinha que me aceitar como era. Percebi que a única certeza que nós temos é que uma hora vamos partir. Então, comecei a pensar que eu não podia mais me privar de ser quem eu era, já estava ficando muito doente, com psoríase e crises de ansiedade.”

Eu sou uma mulher transgênero!  

“Com o tempo, fui buscando informação, estudando, até que chegou um ponto e falei: eu sou uma mulher transgênero e isso explica tudo! Eu não era um homem homossexual! Quando entendi isso, achei que tudo iria ficar mais fácil, mas… eu ganhava competição, viajava pra fora, era notícia no jornal, porém, não importava o que eu fizesse, nunca era suficiente para meu pai.  E isso me martirizou durante todo esse período. A minha mãe me acolheu, disse que ganhou mais uma filha, mas com meu pai foi uma luta. 

Até que fui passar o Natal em família. Fui para casa já 80% resolvida com minha mãe, mas com meu pai ainda estava bem triste, já sabia que não poderia usar a roupa que eu separei para o Natal, o cabelo que queria usar e tudo mais… Daí minha mãe disse pra ele que eu ia usar a roupa que quisesse e que não queria escutar qualquer comentário sobre isso. Eu coloquei um body aberto nas costas, uma calça pantalona e uma lace. Ele ficou surpreso, porque achou que fosse usar uma roupa mais sexy. É que ainda hoje associam muito a transgenereidade com prostituição, tem esse estigma…”

Ásia Niara

“Meu nome de batismo é Jeremias Daniel. Não tenho problema com esse nome, porque tive uma jornada com ele, eu gosto desse nome, só que agora tenho outro que segue a minha identidade, que diz quem eu sou, que está de acordo com o que acredito. 

Primeiro eu mudei o nome no Instagram… E um dia meu treinador viu e comentou comigo. Ele queria saber como era pra me chamar a partir dali. Eu ainda não retifiquei o nome, mas as últimas competições já vinham escrito Jeremias Ásia Niara.”

Ásia anunciou sua aposentadoria no atletismo no início deste ano, nas primeiras semanas de janeiro. Agora, disse que vai começar a reposição hormonal e seguir a carreira de publicidade, sua área de formação acadêmica. Também está fazendo o processo de retificação do nome. Para saber mais sobre ela, siga o perfil @asianiara_ no Instagram. 

 

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Maira Carvalho
Jornalista e Antropóloga, Maíra é responsável pela reportagem e por escrever as matérias do Lupa do Bem.
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