Arquitetura na Periferia empodera moradoras de Belo Horizonte

Projeto capacita mulheres para reformas e construção de casas.

10.05.23

Promover a democratização da arquitetura na periferia. Esse é o principal objetivo do projeto cujo nome já diz tudo! Ao capacitar mulheres para realizar reformas e até construir suas próprias casas, o projeto Arquitetura na Periferia (ANP) tem levado técnica e acolhimento às moradoras de locais que são historicamente desprovidos de acesso a bens e serviços, como as ocupações nos arredores de Belo Horizonte, Minas Gerais.

A idealizadora é a arquiteta Carina Guedes. Ela conta que desenvolveu o projeto porque sentia um incômodo com o alcance restrito da profissão. “A maioria das pessoas nem sabe pra que serve”, diz. Para entender por que isso acontecia, foi pesquisar os motivos que dificultavam o acesso de grupos marginalizados às propostas e soluções da arquitetura. 

Como resultado, desenvolveu um método de trabalho específico para atender as demandas de moradoras de baixíssima renda. O foco nas mulheres está relacionado às desigualdades de gênero, dentro e fora da profissão. “Desde o início, a ideia nunca foi entregar um projeto pronto, como se fosse um produto, mas oferecer informação e conhecimento capazes de oferecer certa autonomia para essas mulheres”, lembra Carina.

O projeto começou com um grupo de três mulheres na comunidade Dandara, em 2013. Atualmente, mais de 100 mulheres já receberam capacitação pelo método ANP em três comunidades diferentes da cidade, gerando impacto em cerca de 1.300 pessoas no total. O projeto também esteve em outras cidades do país, promovendo oficinas e multiplicando o alcance de transformação. 

Reprodução: Créditos Bruna Piantino.

As mulheres e as casas 

As mulheres possuem uma relação com a habitação muito particular. A casa, para elas, não é apenas um abrigo, mas um lar. São elas que passam mais tempo dentro de casa, fazendo sua manutenção ou cuidando de seus familiares. Mas ainda que sejam as mais afetadas pela maneira como suas moradas são construídas, no entanto, pouco participam do seu desenvolvimento. 

Problemas estruturais, como umidade excessiva, falta de iluminação e ventilação, banheiros e cozinhas mal planejadas, por exemplo, podem interferir na vida de mulheres diariamente. Para transformar essas condições, o ANP propõe que as mulheres sejam protagonistas na elaboração de suas próprias casas.

A moradora Adriana Silva, por exemplo, estava muito incomodada com a forma que sua casa tinha sido construída. Para chegar no quarto dela, precisava passar dentro do quarto do filho, um adolescente. Ela já tinha chamado um pedreiro para resolver o problema, mas ele não apareceu. 

Foi participando das oficinas do ANP que Adriana percebeu que precisava fechar uma parede e abrir outra. “Ela comprou tijolo, cimento, quebrou uma parede e fechou a outra, então não foi nem uma questão de falta de recurso financeiro, mas de enxergar a solução para o problema”, conta Carina. 

Reprodução: Créditos Bruno Figueiredo/Área de Serviço.

Mobilização

A equipe do ANP é formada por arquitetas, agentes locais, psicólogas e uma mestra de obras. E para desenvolver o projeto, elas capacitam de forma gratuita pequenos grupos de mulheres dentro dos próprios territórios. Este ano, formaram quatro grupos no total, com uma média de cinco participantes cada, nas comunidades Dandara, Paulo Freire, Eliana Silva e Vila Bispo, todas nas periferias da região metropolitana de Belo Horizonte.

Ainda que exista uma parceria com diferentes movimentos sociais locais, o trabalho do ANP é independente. “As trocas com os movimentos são positivas, muitas vezes eles nos ajudam na mobilização, trazem mulheres que sabem que vão querer participar, mas nós atuamos em paralelo”, explica Carina. 

Os grupos são mobilizados todo começo de ano. Em geral, antigas participantes indicam possíveis candidatas para os novos grupos. Mais recentemente, o ANP também abriu um formulário online devido ao interesse de outras comunidades em participar desse processo. 

Carina Guedes com o lápis na mão. Reprodução: acervo Arquitetura na Periferia.

Após a formação dos grupos, iniciam-se os encontros semanais. Esses encontros são realizados presencialmente ao longo de todo ano. Primeiro, as mulheres aprendem a elaborar projetos e a pensar alternativas de produção e planejamento das obras. Depois, em meados de agosto, começam as oficinas mão na massa. 

Esse é o momento em que as mulheres definem o que vão aprender na prática. São elas que combinam entre si o que querem fazer, avisa Carina. Por isso, normalmente acabam escolhendo aquilo que desejam replicar em suas casas. 

No final do ano, quando começa a época de chuvas, as oficinas se encerram e os grupos são considerados formados. As mulheres não recebem mais capacitação, porém, continuam em contato através das redes sociais.

Empoderamento feminino

“Eu queria criar um ambiente em que as mulheres se sentissem confortáveis para compartilhar suas questões com o grupo”, diz Carina ao ser questionada sobre por que o trabalho do ANP é exclusivo para mulheres. Para ela, quando há participantes homens nos cursos de construção, muitas vezes as mulheres se sentem constrangidas de expor suas dúvidas ou mesmo se posicionar por saberem que suas vozes não serão ouvidas com a mesma intensidade de seus colegas homens, explica. 

“Mesmo na hora de tomar uma decisão, de como a casa vai ser feita, é comum ver o pedreiro impor sua opinião sobre a vontade da própria moradora, então era importante oferecer para as mulheres recursos que as ajudassem a ter mais autonomia”, afirma. Pensando nessas desigualdades de gênero, o ANP oferece acesso a todas as ferramentas para que as mulheres possam se planejar com independência. Faz parte do cronograma das oficinas, por exemplo, estudos de finanças pessoais.

Arquitetura na Periferia
Reprodução: acervo Arquitetura na Periferia.

Mas além disso, quando começou a pesquisar sobre projetos de habitação de interesse social, Carina também se deparou com dados que mostravam que as mulheres que recebem benefícios como Minha Casa Minha Vida tendem a ser mais solidárias: “as mulheres, por serem responsáveis pela casa e pela família, não se preocupam somente com elas mesmas, ao contrário dos homens, que em geral, centralizam as decisões sobre o uso do benefício a partir de interesses individuais”, diz.

Assim, também faz parte do projeto Arquitetura na Periferia o oferecimento de microfinanciamentos para que as mulheres possam realizar suas obras. Os empréstimos são feitos sem cobrança de juros e as mulheres podem negociar a melhor forma de quitar os débitos, desde o valor até a quantidade das parcelas. 

Terapia coletiva

As moradoras encontraram nas oficinas do projeto Arquitetura na Periferia um espaço de troca para suas dores e expectativas. “Como nossos encontros são sempre coletivos, muitas vezes vira uma terapia coletiva”, conta Carina. Pensando nisso, convidou profissionais que pudessem escutar as mulheres com sabedoria e acolhimento para aderir à equipe do projeto.    

As psicólogas prestam apoio às mulheres com dinâmicas em grupo e oferecem atendimento individual, tudo de forma gratuita durante todo o ano de formação. A sobrecarga da mulher, segundo Carina, é um problema evidente. As responsabilidades ligadas ao trabalho de cuidado, além de serem questões tratadas nas dinâmicas em grupo, muitas vezes também atrapalham a plena participação das mulheres nas oficinas. 

Dessa forma, depois que as oficinas se encerram, as mulheres podem continuar tendo acesso às psicólogas, a partir de um valor social acordado entre elas. “Muitas passaram por uma transformação profunda com a terapia, a partir de questões que elas nem imaginavam que precisavam ser tratadas”, diz Carina.

Arquitetura na Periferia
Reprodução: acervo Arquitetura na Periferia.

Moradia é um direito

Segundo relatório elaborado pela Fundação João Pinheiro (FJP), em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Regional, existe um déficit habitacional de 5,9 milhões de moradias no Brasil. Além disso, cerca de 14 milhões de domicílios são considerados inadequados. O impacto disso é enorme, principalmente para as mulheres, aponta Carina. “O acesso à moradia permite que outros direitos sejam garantidos, já que é preciso ter um endereço para colocar o filho na creche ou acessar o serviço público de saúde”, ressalta. 

Para ela, a pouca importância dada ao problema no debate político se deve ao próprio sistema capitalista: a indústria da construção, aliada ao mercado imobiliário, forma uma das grandes fontes de extração do capital, diz. “Então é claro que todos os direitos são importantes de serem assegurados, mas o da moradia talvez seja um dos principais, pois permeia muitos outros”, defende.

O acesso à moradia é uma luta histórica no Brasil e muitas conquistas devem-se aos movimentos sociais, explica Carina. Um exemplo é a Lei no. 11.888/08, que garante que pessoas de baixa renda tenham acesso gratuito a serviços de arquitetos e engenheiros para elaboração de projetos para melhoria das casas. 

“Essa lei tem mais de dez anos, porém não foi implementada na maioria dos municípios até hoje”, lembra. Para Carina, a experiência do ANP mostra que é possível oferecer serviços de arquitetura e construção às pessoas de baixíssima renda e que poderia inclusive virar uma política pública. Porém, falta articulação política para que isso aconteça, afirma. 

Capacitação para o mercado

O sucesso do trabalho do ANP tem sido amplamente reconhecido e divulgado através de prêmios nacionais e notícias nos jornais. Sobretudo, esse reconhecimento é compartilhado entre as próprias mulheres que participam do projeto: muitas perceberam que gostariam de se aprofundar para trabalhar profissionalmente na construção civil. 

Diante dessa demanda, o ANP começou, no início de 2023, um projeto voltado especialmente para inserção no mercado de trabalho. Trata-se de um curso focado nas oficinas práticas, que aprofundam técnicas e conhecimentos de obra. 

Até então, os cursos vinham promovendo o empoderamento de mulheres ao oferecer caminhos para que elas melhorassem seu bem-estar, fosse construindo e reformando suas próprias moradias, fosse tendo segurança para contratar serviços de terceiros. 

O empoderamento, contudo, foi além do esperado! Atualmente, cinco mulheres já estão trabalhando com o mercado de obras. Com o novo projeto, a expectativa é que esse número aumente e que o projeto possa contar, enfim, com sua própria equipe de obras.

Arquitetura na Periferia
Reprodução: acervo Arquitetura na Periferia.

Apoio recorrente

O projeto Arquitetura na Periferia é uma instituição sem fins lucrativos e possui algumas estratégias para garantir sua efetiva realização. Ao longo de seus dez anos de atuação, o projeto só foi possível graças a campanhas de financiamento coletivo, participação de editais, aos prêmios recebidos em dinheiro, apoiadores individuais e às parcerias com empresas. 

“O apoio precisa ser recorrente”, avisa Carina. Por isso, o ANP vem diversificando as formas de colaboração. Nos últimos anos, o projeto criou o selo “Empresa Parceira”. Muitos escritórios de arquitetura, contabilidade e comunicação têm aderido ao selo através de seus programas de responsabilidade social. 

Além das colaborações em dinheiro, também é possível tornar-se um voluntário no projeto: o ANP abre um edital todo início do ano identificando todos os postos de voluntariado necessários. Os voluntários precisam se comprometer a prestar seus serviços sem custo durante um ano. 

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Maira Carvalho
Jornalista e Antropóloga, Maíra é responsável pela reportagem e por escrever as matérias do Lupa do Bem.
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